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A Tapeçaria, o tempo e o espaço

 

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Sem reduzir as suas obras à servidão da parede, Rosa Godinho, privilegia todavia o trabalho em superfície e, nesta situação, a parede é o seu lugar "material". Mas a superfície é para ela um caso de densidade. Uma opacidade. Qualidades que lhe advêm dos materiais escolhidos e, ainda, dos tratamentos observados".

Joaquim Matos Chaves escrevia estas palavras sobre o trabalho de Rosa Godinho, em 1990. Quase dez anos depois é reconfortante, por todos os motivos mas essencialmente pelos que tocam a actividade da artista, assinalar que elas se encontram já desactualizaas. Uma década para mudar, aproveitada para novas experiências que transformaram completamente o panorama da sua produção. Da periferia para o centro, da focalização num ponto plano para uma visão irradiante, do isolamento sobre o muro à socialização no espaço, a mudança operada é enorme.

Para mim, fazer o aquecimento para a escrita, não é escrevinhar, mas ler. Desta vez o aquecimento recaiu, e mesmo a propósito, sobre o catálogo de uma exposição de Lê Corbusier. Lê Corbusier realizou numerosas tapeçarias para espaços públicos e casas particulares, tendo procurado insistentemente que a tapeçaria abandonasse os sítios que lhes estavam destinados e que se resumiam, em grande parte, à zona superior de um fogão de sala ou de uma grande cómoda. Sempre tentou que a tapeçaria descesse ao solo e se impusesse ao homem nas áreas em que ele próprio se movimentava. Para aquele autor era tudo uma questão de composição -de composição arquitectónica.

Sem relação directa com o projecto que Rosa Godinho apresenta, é interessante notar também a aposta desta artista num conjunto de peças uqe descem da parede e vão ao encontro do homem. Para ela é tudo uma questão de composição - de composição escultórica. 

O que parece haver de comum em objectivos tão diversos e épocas distintas é a ideia de integração a sobrepor-se à decoração. As implicações desta situação são enormes. Uma delas liga-se à anulação da tapeçaria como peça de frente e verso e ao abandono de tal duplicidade limitativa. A tecelagem sempre se permitiu muito pousa excepções nesta área, podendo assinalar-se, a esse título, certos tapetes que apresentavam duas faces, adaptadas a diferentes épocas do ano. No entanto, trata-se de uma excepção que não contraria aquele principio de um só lado, útil e visível. O procedimento de Rosa Godinho, ao retirar as suas peças do muro, obrigou a um apuro técnico e a um grau de acabamento uniforme nas diversas faces da obra, já que o objectivo é a visibilidade total. 

Para lá dos valores de visibilidade, outras implicações ganham relevo no seguimento das opções feitas pela artista. A existência de aberturas e defendas nas peças tridimensionais quebra a habitual opacidade, impõe valores de transparência, dinamiza o objecto e faz movimentar o observador.

A diferença é grande em relação à tapeçaria tradicional de carácter estático. Arte de nómadas, por excelência, a par de elementos móveis e facilmente transportáveis, a tapeçaria havia-se tornado um complemento perene do muro nos salões oficiais, onde composições figurativas, seguindo programas iconográficos rigorosos, eram enquadradas por frisos geométricos ou vegetalistas. Objecto utilitário e objecto de celebração , objecto documental e testemunhal, a tapeçaria associava-se a momentos heroicos, descritivos e narrativos enquanto se apropriava dos locais de representação do poder.

As tapeçarias que temos perante nós, já não contam histórias grandiosas e prefeririam fazer dos materiais os seus protagonistas. O sisal, a corda, o vime, a ráfia, em lugar de narrar, evocam ambientes e sugerem poéticas. Deste modo, a sua presença é nos lugares da criação.

Não deixa de ser relevante referir que, depois de alguns anos de aprendizagem para as tradicionais áreas da pintura e da escultura atingirem o hibridismo de criações dificilmente conotáveis com uma ou com outra arte, as denominadas artes decorativas - em que a tapeçaria sempre foi incluída - procuram também o mesmo trilho. Assim se lhe abrem perspectivas difusas de integração artística. A mudança de procedimentos técnicos e a concepção global do trabalho foram os factores que estiveram na base desta aproximação. Paralelamente, a discussão estética e a investigação em torno da história da arte ajudavam à recuperação da actividade para um estatuto diferente.

O trabalho de Rosa Godinho ilustra bem esta evolução. Se nenhuma primeira fase se concretizou a apropriação de procedimentos pictóricos, estabelecendo um cromatismo de sábias transições, que agora permite as variações mágicas do azul, numa segunda etapa, verificou-se a aproximação a procedimentos escultóricos, impondo uma leitura de volumes no espaço. Todavia, não se julgue que tais ensaios serviram apenas para afastar a tapeçaria de uma matriz específica: pelo contrário, o contágio com outras áreas criativas acabou por afirmar estratégias de desenvolvimento interno e de renovação intrínseca. O oficio continua a exigir as tarefas tradicionais : a escolha dos materiais, o tingir e o apurar da cor, a montagem do esqueleto, o seu preenchimento gradual e a lentidão de uma actividade paciente, casada com o tempo. E se, pela execução, a tapeçaria conhece todos os segredos do tempo, o resultado final de Rosa Godinho conhece os segredos do espaço global que se instala. Entre as ondulações da matéria azul e os acidentes das texturas cor de terra e um projecto amplo que se realizaA exposição de Rosa Godinho, pode apenas ser uma das escassas individuais em que se apresenta tapeçarias, mas é sem dúvida, o momento para reflectirmos sobre tudo isto. 

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Laura Castro

© 2020 by Rosa Godinho

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