A espantosa reabilitação empreendida na prática artística ocidental no domínio no que se vinha chamando artes aplicadas ou artes decorativas, por oposição às artes puras, é um facto irreversível. E atingiu tais valores que a oposição é uma dicotomia cada vez mais desprovida de sentido. Na cerâmica como na tapeçaria, noutras áreas até no vidro, o contributo estético trazido por estas disciplinas é, hoje, de importância capital. E capital porque só delas pode transparecer. Da especificidade dos seus materiais, dos procedimentos que as caracterizam, das experiências que favorecem, partem-se para ousadias inconfundíveis e informações únicas.
Entre nós a tapeçaria e a cerâmica investiram-se de significados tão ricos que o protagonismo adquirido não pode continuar a ser secundarizado e, menos ainda, silenciado. E a suspeição, ainda frequente nos apreciadores, impõe-se ser abandonado por não poder resistir a um conhecimento nem a uma sensibilidade mais abertas.
Elas são já uma realidade em estado de flagrante fulgor expressivo e exigir uma maior atenção de galeristas, dos meios de comunicação, dos fruidores e dos coleccionadores. Protagonismo e projecção coincidiram então e os factos encontrariam o seu lugar certo no espírito de todos.
Se a qualidade das obras o garante não pode ficar indiferente ao número de artistas que fizeram da tapeçaria, ou da cerâmica o seu meio de expressão por excelência. E nesse número considerável há nomes de que o destaque está obrigado. Não é este o momento indicado para o fazer. Limite-se por isso a indicação e dizer que o nome de Rosa Godinho está entre eles. Rosa Godinho de que a obra é a razão destas palavras: das anteriores e das que se seguem. Palavras que evitam contudo substituir os seus trabalhos que são, no fim de contas, o grande argumento de uma notoriedade. E se são um discurso segundo, porque discurso sobre discurso, são-no com a consciência de que no primeiro reside em boa parte a sua justificação.Dentro dum sentido de medida apropriado para o prefácio de uma exposição, tornado público numa ou em várias páginas do catálogo que a acompanha, o texto organiza-se numa dimensão breve que não ofusca aquilo que lhe dá origem. Não tem, assim, o objectivo de esgotar as, aliás inesgotáveis, significações de que o conjunto de obras se faz portador. Apenas visa uma aproximação que possa ser de maior ou menor utilidade para este ou para aquele. Apenas visa ser companhia das explicitações pessoais.
Um primeiro aspecto ressalta imediatamente no trabalho da artista: a integração nalgumas obras de matérias de uma natureza toda outra relativamente aos materiais que a modalidade fez seus no decurso de uma tradição secular. E com a particularidade, naturalmente, de exigirem também procedimentos outros.
Sem reduzir as suas obras à servidão da parede, Rosa Godinho privilegia todavia o trabalho em superfície e, nesta situação, a parede é o seu lugar “natural”. Mas a superfície é para ela um caso de densidade. É uma opacidade. Qualidades que lhes advêm dos materiais escolhidos e, ainda, dos tratamentos observados.
Em muitos trabalhos verifica-se o culto da composição onde os teores geométricos são manifestos. O que não impede o aparecimento de elementos denotando um cunho mais expressivo. Pelas características morfológicas mais irregulares, pelo relevo que exibem, por se afirmarem em contraponto. O que acontece dentro dos limites de uma gama cromática discreta e que recusa qualquer tipo de estoidência. A discrição cromática é, aliás, um carácter que favorece os ênfases concedidos a outros aspectos já que não distrai a atenção dos próprios valores.
Os quais, estes e outros, e a apreciação de cada um não deixará de o constatar, surgem num conjunto informado por uma preocupação poética inegável. Uma poesia com o concreto dos objectos e das densidades mas uma poesia plena das subtilezas do ofício de tecer. Um tecer mostrado como um fazer susceptível de proporcionar estesias que não têm termo de comparação. Porque os sinais do processo e do material, inconfundíveis, são em, cada peça, sinais que enviam para a aventura do olhar e do sentir. Para o regozijo dos sentidos e do espírito. Como quem confessa, e partilha, o desejo das procuras. Mais, como quem, após a cumplicidade com os dados que tornam as formas possíveis em formas reais, persegue a cumplicidade dos que estão disponíveis para com a obra de arte se identificar.
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Joaquim Matos Chaves